:: Sobre os ventos quando quebram tabus

Os 40 anos das primeiras ordenações femininas ao sacerdócio na província americana da Comunhão Anglicana e o símbolo desta conquista para nossas inspirações por uma Igreja mais acolhedora e aberta ao novo.





Na imagem já podemos nos apropriar do peso de sua significação. A incrível bispa Barbara Harris, usando mitra no serviço neste domingo (27/07) na Church of the Advocate, exatamente ela que se tornou a primeira bispa (e a primeira bispa afro descendente também) de toda a Comunhão Anglicana em meados dos anos 80. 



Falando assim atropelamos a tensão que foi a data de sua sagração ao episcopado no dia não menos simbólico 11 de fevereiro ― o dia em que a Igreja Episcopal americana festeja anualmente a memória de Fanny Crosby, chamada de "a rainha dos hinos sacros contemporâneos", uma poetisa e compositora cega que soube na pele o peso da exclusão no século XIX, tendo sido a primeira mulher a discursar no Senado americano ―, mais precisamente no ano de 1989, na diocese de Massachusetts. Ameças de morte chegaram por várias mensagens. A misoginia de muitos setores emergiu com a possibilidade real de uma mulher ser "maior que deveria". Os "filhos mais velhos" na analogia à parábola do Filho Pródigo se irritaram com o Pai (que chama quem Ele quer!) e se recusaram a entrar dentro de Casa. Temendo por algo mais grave, foi-lhe recomendado usar colete à prova de bala durante a solenidade de sua sagração ao episcopado, ao que ela recusou veementemente. 



No dia da sagração como bispa uma equipe da Polícia de Boston foi destacada para estar dentro e fora da igreja a fim de evitar o que à época parecia ser inevitável depois de tantas ameaças. Não, nada aconteceu senão ameaças. Todas as coisas cooperaram para o bem de todos aqueles e aquelas que amam a Deus...

Como está escrito: Agindo Deus quem é que há de impedi-Lo?

Passados 40 anos das primeiras ordenações femininas ao sacerdócio da província americana da Comunhão Anglicana (a bispa Barbara Harris não estava entre as primeiras a se tornarem presbíteras mas foi ordenada anos mais tarde), na mesma igreja ela co-presidiu a histórica celebração. É dela a afirmação ao explicar o porquê de insistir no seu chamado e na sua ordenação: 

"Eu realmente não queria ser um dos garotos. Queria sim oferecer meus dons peculiares como mulher e negra... uma sensibilidade e uma consciência que se transformam muito mais que os anos passados na opressão."


A História é sempre aliada daqueles que desejam construir alguma coisa. O filho pródigo é o lembrado na parábola do Cristo, e não o irmão mais velho que não aceitava o fato de alguém  na visão dele  sujo, imoral, desqualificado e bla bla blá ter os mesmos direitos que ele. Chico Mendes, Irmã Dorothy e tantos outros são os lembrados pelo seu legado que incomodou os sistemas. 

Daqui a uma ou duas gerações, creio eu, pessoas se lembrarão de seus pais e avós e sua luta em favor daquelas pessoas postas à margem pelos sistemas excludentes, quase sempre morais ou raciais. Olharão para trás e verão quanta luta e quanta energia foram gastas para preparar o chão que eles encontrarão, mas que, por outro lado, poderia ser gasta de outras maneiras se acaso aquela geração (no caso, a nossa) parasse de "interpretar" ou "aprisionar" Deus em textos que nos servem de inspiração para compreender como outras pessoas viveram suas experiências dentro de seus contextos com suas milhares de limitações (culturais, sociais, antropológicas, jurídicas, médicas, etc). Daí, fico meditando no que o reino de Deus significa para mim e para quem tanto luta para que ele não alcance pessoas diferentes senão  observe que coisa!  para torná-las seus clones, pois, ainda são capazes de assegurar para todos (este é o perigo, para todos!) que isto é "o certo". Como li (e me alimentei) das palavras do companheiro Carlos Bregantim, lá de Sampa, "neste Reino, no Reino do Deus Eterno não cabe dependentes, co-dependentes de ninguém, soldados manipulados, discípulos sem consciência própria, dependentes de bengalas, muletas e escoras. Neste Reino, no Reino do Deus Eterno todos e cada um andam com suas próprias pernas segundo e seguindo suas próprias consciências cativas à Cristo que a ninguém escraviza"

Comecei citando um trecho de um documento histórico de uma província da Comunhão Anglicana, a Episcopal USA, da qual nasceu a filha onde nossa Pastoral encontra-se propositalmente inserida nesta que é a província brasileira, também chamada Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. O documento celebra os 40 anos de uma vitória testemunhada pela História e por aqueles que sobreviveram as últimas gerações para assistir a INCLUSÃO das mulheres à ordenação sacerdotal depois de muitos anos de intensos e acalorados debates, ameaças e ofensas dos mais conservadores aos "liberais" (e vice-versa). 

Apesar de tudo isso, o vento do Espírito LIVRE COMO ELE É nunca deixou de soprar e realizar sua vontade, posto que ninguém poderá impedi-Lo jamais. Ora, pessoas carregam o peso e a glória de serem pessoas. Pessoas não são objeto de escambo, de troca ou manipulação. Pessoas e seus corações não recebem de Deus etiquetas ou marcas a fogo de boiadeiro (homem, mulher, negro, branco, alto, baixo, rico, pobre, hétero, gay, nerd, geek, etc). Pessoas são obras-primas da Criação e do Criador. Pessoas carregam a eternidade. Digo isso porque creio que o Reino de Deus continuará avançando em muitas consciências (o único lugar onde ele de fato cresce e se expande!), retirando montanhas e as lançando no fundo do mar, abrindo caminho para o "nascer de um novo pensamento", sem o qual, NINGUÉM CONSEGUIRÁ VÊ-LO CRESCER... 40 anos de ordenação feminina conquistados entre os gringos da América do Norte... Aqui no Brasil temos um pouco mais da metade deste tempo. Tal como lá não foi fácil por aqui...

Hoje as conquistas continuam na mesma vibe, agora, no entanto, rumo à inclusão de muitas outras causas não menos importantes. Interessante perceber é que tudo tem seu tempo certo de acontecer, bem no ritmo ditado pelo livro de Eclesiastes e o "tempo para todo propósito" se desenhar nas paisagens da História. Fazer parte deste caminhar da História é incomparavelmente melhor para mim, particularmente, que chegar e encontrar tudo pronto. A sensação de ter feito parte da luta, em meio à massa que segue o curso dos ventos do Espírito, apresentando os calos marcados nas mãos, enfim, não tem preço. É um dos muitos e mais fascinantes desafios como cristão, latinoamericano, brasileiro e episcopal anglicano em pleno século XXI.


No dia a dia as nossas lutas e conquistas mais ordinárias seguem o mesmo fluxo do agir divinal por trás da História, algo sendo perfeitamente orquestrado pelo Autor da meta-história, e que nos atinge diretamente em todas as dimensões da vida, pois onde houver desejo de unidade, solidariedade, partilha de direitos e cuidado do semelhante na sua integralidade, o mesmo e único Espirito estará soprando e sinalizando que é possível mudar os cenários de nossa existência com algo infinitamente melhor. É possível mudar os rumos da História quando rendidos à certeza que provém da fé que Aquele que começou a boa obra de salvação, chamando-nos quando ainda distantes, há de levá-la a bom termo até o momento certo, até aquele Dia.

Sou um sonhador dizendo isso, mas é algo que confesso publicamente como sendo parte indissociável do meu ser. Não sei ser sem ver os excluídos tornados parte, e digo isto sem querer que os "centuriões romanos" deixem de ser "centuriões romanos", que as "mulheres samaritanas" deixem de ser "mulheres samaritanas", mas que antes tenham seus corações transformados pelo Poder do Amor. Não há o menor problema de chamá-lo Jesus. Ele não sofre de crises de identidade, por isso sabe que aquele que ama O conhece. E que aquele e aquela que O conhece e O ama, faz as obras que Ele fez; por isso também é conhecido pelo Pai e pelo Pai é glorificado e glorificada no silêncio do cotidiano como povo de Deus.

A História é testemunha ocular de que o vento sopra onde e quando o Senhor dos Ventos quer. Pode-se passar uma ou mais gerações mas não há quem possa resistir quando Ele chama... Ora, Ele chamou e continua chamando homens e mulheres, e o mais legal é que Ele não coloca rótulos. Ele apenas pergunta a uns "Saulo, Saulo, por que me persegues?"; a outros, às vezes, insistindo, "Pedro, tu me amas?". O fim e a motivação é uma só: "vinde todos vós..."

E a gente, de tempos em tempos, ainda fica nessa de querer impedir alguns...

Ricardo Pinheiro
Inverno/2014

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