MUDAR PARA CONTINUAR AVANÇANDO
Editorial: A Unidade da Igreja e a defesa da dignidade do ser humano face aos diferentes clamores de seu povo.
Enquanto pastoral temos o cuidado para não incorrer na ilegitimidade canônica e falar “em nome” da Igreja, da Diocese ou de pessoas num universo anglicano. Informamos e levamos nossos amigos e aliados a refletirem por si mesmos sobre os fatos e as análises dos fatos nas matérias postadas.
É notório para os que se aproximam de nossa pastoral a preocupação que temos com a fundamentação teológica de nossos argumentos. Não podemos ser levianos nem imprudentes em matéria de fé. Há que se preservar não apenas o espírito de nossas tradições mas também nossos documentos oficiais (credos, cânones e estatutos, por exemplo).
Por esta razão, em
que pesem os esforços para contribuir com o debate em torno do tema “matrimônio
igualitário” não somos ingênuos a ponto de crer que mudanças na vida da Igreja
nascem da noite para o dia. Nunca foi assim no Cristianismo. Os Concílios na
História da Igreja extravasavam anos e, ainda assim, nem sempre carregaram
absoluto consenso teológico. E matérias como o “matrimônio igualitário” e a
bênção dessas uniões estamos convictos que o Sínodo de nossa Igreja a ser
realizado em novembro próximo poderá dar um grande passo ouvindo clamores de
parte de seu povo, em prol da defesa da dignidade de muitos irmãos que vivem
suas respectivas relações afetivas de forma sincera, cristã e comprometidamente
fiel, caso venha analisar e debater a questão.
No entanto, é
imperioso amadurecer toda e qualquer iniciativa de mudança na Igreja com
fundamentação teológica e respeito para com todos, inclusive para com aqueles
que exercem dignamente o direito de discordar por questão de consciência e fé.
Assim aconteceu quando debateram-se durante mais de uma década os argumentos
com vistas a ordenação feminina. A Igreja saiu vitoriosa no alcance da
maturidade, à luz da fé, para compreender que todas as pessoas são iguais em
direitos e deveres diante de seu Senhor.
Por essa razão,
deixamos claro que nosso papel não é “falar em nome de”, mas apenas o de
fomentar o debate, abrindo a perspectiva para entender que as mudanças são
necessárias, embora não possam comprometer a Unidade e a Comunhão da Igreja nem
ser atropeladas sem o devido exame teológico e o estímulo para que as
consciências sejam enriquecidas por meio dele. Um dos muitos exemplos que
trazemos à baila dentro da Comunhão Anglicana, neste aspecto da defesa das
bênçãos sobre as uniões de mesmo sexo, ocorreu na Igreja Anglicana da
Austrália, a qual é dividida em Províncias sob a jurisdição canônica de
Arcebispos. Em meados de outubro deste ano a Diocese de Ballarat, uma das
últimas cinco dioceses que não ordenavam mulheres ao presbiterado, aprovou por
maioria de seus delegados tal mudança. Das mais de vinte dioceses australianas
apenas três possuem bispas. A Diocese de Perth aprovou, no início de outubro, a
bênção nas uniões de pessoas de mesmo sexo. Outras Dioceses na mesma Província
da Austrália Ocidental [dentro da qual juridiciona-se a diocese de Perth] já
não admitem o rito. O interessante em todo este universo utilizado como exemplo
é o fato que todas as dioceses convivem tão harmoniosa quanto diversamente
debaixo da mesma Comunhão e obediência aos seus Cânones Gerais e à sua
Constituição, que, inclusive atribui autoridade às dioceses para determinadas
matérias (Canon Concerning Authority on Certain Matters,
1989). O cuidado eclesial com a Unidade
e a Comunhão são vitais. Consciências são respeitadas quando as decisões da
Igreja não aviltam a compreensão de seus clérigos acerca de temas para os quais
a matéria é de fé, portanto, subjetivamente discernida como ordem e verdade.
Assim, para nós,
cabe-nos a reflexão quanto ao papel do que desejamos num tema tão importante
quanto delicado para a compreensão de muitos que estarão no próximo Sínodo
Geral de nossa Igreja. Todavia, sabemos que o diálogo permanente e o respeito
pelo direito do outro resulta no estreitamento das distâncias, inclusive nas
divergentes questões de fé. Este é um dos princípios que nós, anglicanos,
sabemos valorizar por uma questão histórica e de identidade. A aplicação deste
princípio – e de muitos outros –, buscando a Unidade e a Comunhão da Igreja e,
consequentemente, a Glória de Cristo, Seu Senhor, o qual é Deus de todos, e não
apenas de alguns, vale-nos para compreender que tornar imperativa a todo o
clero, independentemente de consciência, uma mudança como a da bênção para as
uniões de pessoas do mesmo sexo pode não ser a mais democrática e refletida
decisão. Há que se buscar no diálogo o equilíbrio, o que vale dizer, não
caminhar a favor dos extremos.
Todavia, urge
reconhecer a legitimidade do direito aos casais homoafetivos dentro da Igreja,
até por uma questão de honestidade para
com os solenes votos que fazemos
na renovação da aliança batismal (expostos no Livro de Oração Comum, pp.
178-179), quando reafirmamos o compromisso da defesa da dignidade de todos (ou
seriam quase todos, a critério de alguns óbices que carregamos?).
Bem sabemos,
contudo, que os que defendemos a plena dignidade para todo o ser humano não
carregamos a insensatez de deixar de lado o direito fruto dos princípios que
norteiam a fé de que é imperioso continuar valorizando nossa Unidade e Comunhão.
Por isso mesmo, buscamos o “caminho do meio”, proposto por Jesus, aprovando-se
que tal medida, inquestionavelmente legítima e perfeitamente cabível na
evolução e nos desdobramentos do cenário social dentro do qual a Igreja
caminha, possa oferecer ao clero e às paróquias que arguirem questão de
consciência a garantia de não incorrer em desobediência aos Cânones Gerais e
Diocesanos, garantindo-se, quiçá, tal como já existe nos Estados Unidos e no
Canadá, o mínimo de uma paróquia dentro de cada Diocese, a critério de seus
bispos, que possa realizar as mencionadas bênçãos matrimoniais até que a
matéria seja exaustivamente reexaminada no próximo Sínodo e a Igreja possa, de
uma vez por todas, abrir-se como Luzeiro cujos raios e luminosidade atingem a
todos e todas, de modo que não haverá mais sujeitos com menos valia ou
tratamento diferenciado em razão de sexo, cor, origem e orientação sexual.
Infelizmente, em que pese nosso “ethos” em prol dos direitos humanos, ainda
carregamos alguns sinais que afrontam, na prática, os solenes votos de
renovação da aliança batismal por não tratarmos a todos com os mesmos direitos (prova
maior não há que a falta da aprovação dos ritos para bênçãos matrimoniais aos
casais homoafetivos!).
Importante,
insistimos, é que não se perca de vista o legítimo direito, porém, que “a mandato seu praecepto non est inchoandum” (Não
se deve começar do mandado ou do preceito), mas a partir do natalício de uma nova
compreensão sobre todos os possíveis resistentes, a qual só é produzida por
obra do Espírito Santo, Aquele que “é” e que “opera” a Unidade da Igreja. Em
relação a esta “obra” ou “função” do Espírito em relação à Igreja, é oportuno
nos lembramos que não se trata de mera assistência, mas uma relação essencial e
constituinte da Igreja como afirma Santo Ambrósio. A Igreja é diversa, é
plural, caminha com seus santos e santas no mundo, por isso mesmo ela é antes
de tudo, Una, Santa, Católica e Apostólica. A Unidade da Igreja, portanto, é o
coroamento da Graça que pulsa e lhe sobressai antes mesmo de lhe colocar
“separada para Cristo” (por isso mesmo, Santa); ou, ainda, universal para todo
aquele que crê (por isso mesmo, Católica).
Entendemos que o
convencimento não virá da persuasão de nossos argumentos ou como mero
desdobramento do que a sociedade já tenha alcançado, em termos de conquistas
constitucionais (ou das interpretações do Judiciário acerca delas), mas pelo
agir da Graça de Deus nos corações de seus filhos e filhas, tal como o fez com
Pedro na revelação em Jope: "Não
chame impuro ao que Deus igualmente santificou" (Atos 10,15). Não
chamemos em nossos corações de “impuro”, de “indecente”, de “anormal”, de
“estranho”, de “ignomínia”, aquilo que Deus igualmente santificou. Nada mais é
santo que o amor.
Muitas vezes as
mudanças de posicionamento são necessárias para se continuar avançando num tema
delicado conquanto urgente. As implicações de nossa “inclusão” no que se refere
à alteração do Cânon, aprovando o rito da bênção nas uniões de mesmo sexo, leva
em conta não apenas nossa confiança na Graça que, em Cristo e na Unidade de
Cristo, já reconciliou e santificou, mas também a própria diversidade da Igreja.
Não é Paulo, o apóstolo da Graça, quem retoricamente nos põe pelo avesso ao
perguntar: “E, se todos fossem um só
membro, onde estaria o corpo? Assim, pois, há muitos membros, mas um corpo!”
(I Coríntios 12,19-20). E se todos nós fôssemos negros em meio à diversidade
das cores da Criação? Há genuinamente Corpo se nos fecharmos às demais cores,
criando distinções entre uma e outra na hora de oferecer ritos e bênçãos? E se
todos nós fôssemos heteroafetivos em meia à diversidade da própria sexualidade
humana, bênção da Criação? Há genuinamente Corpo se continuarmos impedindo ou
nos silenciando quanto aos direitos de nossos irmãos e irmãs que se amam? As
perguntas apenas carregam a mesma retórica paulina...
Louvado seja nosso
Senhor Jesus Cristo, pela noiva que é a Sua Igreja; posto que nela cabem todas
as realidades da Criação, o que vale dizer, cabem todos os corações e todas as
consciências nos seus mais diversos sinais de expressão e fé. Assim cremos e
por isso mesmo seguimos pelo Caminho proposto por Jesus, o do equilíbrio e da
reflexão que contempla os semelhantes em meio à nossa individuação, cientes de
que Um só e o mesmo Espírito há de guiar cada um, até que cheguemos todos ao
pleno convencimento do que seja bom, urgente e necessário realizar no
cumprimento de nossos votos de renovação da aliança batismal, defendendo a
dignidade de todos os seres humanos, a fim de continuarmos a dar glória somente
a Deus.
Avanços em meio à
diversidade de opiniões, geralmente, acontecem quando há mudanças. De todos os
lados. Mudanças são resultado da fé que anima a Igreja. Por isso mesmo, cremos
que é tempo de seguir com fé pela aprovação do rito para bênção das uniões, de
todas as uniões nascidas na sinceridade do coração e plantadas no solo firme do
amor, sem ferir a consciência de ninguém. Nada mais justo, racional e salutar
que se abra a possibilidade de discordar (e, discordando, arguir o direito de
não vilipendiar a consciência, não realizando o ato), sem contudo deixar de
respeitar e permitir que seja realizado por outrem.
Acima de tudo,
porém, confiamos [com + fé] de que a Unidade e a nossa Comunhão
são sinais visíveis na Missão da Igreja de Cristo e que nada impedirá que o
Espírito Santo continue realizando a obra de santificar e seguir santificando
corações e consciências, de tal modo que preservemos a Unidade, que glorifica
não o homem (com seus medos, pudores e pré-conceitos arraigados), mas apenas a
Cristo, o qual se entregou por todos e todas, até mesmo aqueles que alguns de
nós ainda consideram menos dignos de serem tratados com o “assim como” da inigualável
Oração do Pai Nosso.
Rio de Janeiro, 26
de outubro de 2013.
Ricardo Pinheiro
Coordenador do
Movimento Episcopaz
Anglicanos
pró-diversidade & pela paz
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