Dilemas da prática missionária
Carlos
Eduardo Calvani
Este texto é continuidade de uma
reflexão anterior na qual escrevi sobre algumas crises que vivenciamos na IEAB
– crise numérica; crise financeira; crise da Proclamação e crise da motivação.
(http://www.paroquiadainclusao.com/site/?p=13911 ).
Agora chegando ao final de um
período de três anos de iniciativa missionária em Campo Grande,
compartilho algumas reflexões que ocupam meus pensamentos no travesseiro e no
momento das orações.
Por que fazer missão? – No
texto anterior observamos que falta em nossa Igreja motivação e iniciativa para abrir
novas comunidades em lugares ainda não alcançados. Em alguns setores de nossa
Igreja ainda persiste uma noção de que missão visa batizar as pessoas e que, se
a maioria dos cidadãos brasileiros já é batizada na Igreja Romana ou em outra
igreja evangélica, não há necessidade de qualquer iniciativa para levar a
Igreja Episcopal Anglicana a esses lugares. Houve época em que a IEAB se
expandia no Brasil apenas pelo fenômeno das migrações. Quando uma ou duas
famílias episcopais mudavam para cidades em que não existia a Igreja,
solicitavam o acompanhamento pastoral para batismos, casamentos, confirmações e
cultos eventuais. Em muitas dessas regiões, outras pessoas eram atingidas por
esses momentos e acabam se integrando a nossas pequenas comunidades. A expansão
e crescimento da Igreja acontecia muito mais por milagre divino mesmo que
propriamente por iniciativas planejadas por parte da estrutura. A frase de uma
liderança eclesiástica nos anos 50 ainda parece estar viva para muitos: “o que
é que a Igreja Episcopal está fazendo no Brasil? Aqui não há espaço nem lugar
para nós. O Brasil já é católico…”
Mas essa é uma concepção errônea e
limitada de missão, pois a missão abrange presença, serviço, liturgia,
testemunho profético, etc. Os primeiros missionários episcopais-anglicanos que
vieram para o Brasil estavam imbuídos de um nobre ideal – sabiam, por
experiência própria, na América do Norte, que o campo religioso não é fechado e
que há pessoas que, mesmo tendo sido batizadas na Igreja Romana ou em outra
igreja evangélica, afastam-se e perdem os referenciais da fé. Os motivos podem
ser diversos – falta de educação cristã ou geralmente decepções na vivência
cristã. Contudo, muitas dessas pessoas estão abertas a propostas alternativas
de vivência da fé. O modo como a Igreja Episcopal apresenta o evangelho, com
seriedade, solenidade, compromisso social e sem moralismos apresenta-se como
uma alternativa muito interessante a várias pessoas.
Essa foi uma das motivações que nos
fizeram tentar iniciar uma comunidade em Campo Grande (MS)
após uma experiência em Vitória (ES). Lamentávamos o fato de essas importantes
cidades (capitais) não contarem com a presença episcopal-anglicana. Além disso,
conhecemos a estratégia do apóstolo Paulo em Atos: fixar seus esforços em
cidades maiores da época, criando comunidades que posteriormente iniciariam
seus próprios esforços para atingir as cidades menores.
O difícil início – Quando
aqui chegamos em março de 2010, não tínhamos qualquer contato. Inicialmente,
solicitei a todos os bispos e a vários colegas do sul que tentassem se informar
sobre famílias episcopais-anglicanas residentes em Campo Grande. Há
muitos CTGs na cidade e imaginávamos que, dentre a colônia gaúcha poderíamos
encontrar algumas famílias episcopais. Porém, poucos responderam.
A primeira celebração foi assistida
apenas por curiosos. Nos domingos seguintes a curiosidade diminuiu e durante
três ou quatro meses, apesar dos muitos convites, apenas nossa família
celebrava a liturgia anglicana em louvor a Deus. Houve momentos de muito
desânimo, mas sempre nos tranqüilizávamos pensando ser ainda o tempo da
semeadura.
Aos poucos tínhamos um grupo
regular oriundo de igrejas evangélicas pentecostais, decepcionadas com a falta
de profundidade teológica dessas comunidades ou oriundos da Igreja Católica,
mas por serem descasados e por outros motivos, não encontravam espaço ali.
O problema do horário – Uma
das questões mais difíceis de administrar no início (na verdade, até hoje) é o
problema do horário. Já tivemos várias experiências com horários diferentes –
18:30 ou 10:00 ou 19:00 (quando nos reuníamos no hotel) ou 09:30 (horário
atual) e continuaremos tentando horários alternativos que sejam oportunos pelo
menos à maioria da comunidade.
Contudo, parece já estar
internalizado culturalmente em muitas pessoas que há momentos e lugares em que
se pode chegar atrasado, e outros não; Escolas, faculdades, cinema, jogos de
futebol, programas de TV geralmente sempre começam no horário e as pessoas
chegam antes do início. Mas há outros lugares – e o culto religioso é um deles
– em que as pessoas de antemão já desconfiam que nunca começa no horário, e por
isso sempre chegam atrasados. Nossa disciplina, porém, insiste em iniciar o
culto no horário marcado mesmo com duas ou três pessoas presentes. Muitos
chegam já no momento do sermão, e perdem os ritos iniciais de louvor e glorificação.
Identidade litúrgica – Em
uma comunidade cujas pessoas são oriundas de diferentes estilos eclesiásticos,
a dinâmica do culto sempre é problemática. As “preferências e estilos musicais”
são muito variados. Há pessoas oriundas da Igreja Romana e que vagamente
recordam alguns responsos litúrgicos ou então conhecem apenas as canções dos
padres-cantores. As pessoas oriundas de igrejas evangélicas já não conhecem
sequer os hinos clássicos do protestantismo, e seu referencial musical são os
“cânticos-gospel”.
Tentamos aproveitar algumas dessas
canções, mas as reclamações sempre surgiam. Algumas reclamavam que “não
conheciam os hinos”. Como porém, conhecerão, se não cantarem? Outras diziam
simplesmente que “não gostavam”
Essa constatação serviu como um
alerta para não cair em “armadilhas”, tais como as sugestões de inserir
cânticos gospel dessas comunidades ou momentos de “oração espontânea”. Alguns
argumentam que isso é necessário para “atrair jovens”. Logo percebi que se
permitíssemos, aos poucos a liturgia anglicana seria subvertida e nos
transformaríamos em uma igreja igual às outras. A fim de evitar problemas
futuros, nos domingos seguintes passei a preparar as liturgias como se
estivesse em uma
Catedral. Embora fôssemos um pequeno grupo, utilizamos LOCs e
Hinários, bem como a gravação de hinos clássicos em MP3 para serem usados
durante as celebrações. Algumas pessoas estranharam e não retornaram.
Constatamos uma grande dificuldade
na educação musical. A maioria das pessoas acostumou-se às canções comerciais
(sertanejo-universitário, principalmente) e não são capazes de perceber a
riqueza de canções elaboradas com maior técnica musical. Para o estranhamento
de muitos, às vezes optamos por trechos de música erudita, mas poucos se abrem
à beleza da música. Apreciar música também é um ato de culto. A música requer
de nós dedicação total de nossos sentidos (“Sursum corda” – corações ao alto!),
requer tempo e entrega, mas em nosso mundo corrido e agitado, poucos estão
dispostos a viver essa experiência.
Perdas e decepções – Estabelecer
laços de amizade com as pessoas sempre é enriquecedor, mas também traz
ambigüidades quando a convivência é afetada.
Nossa experiência tem mostrado que
as pessoas se afastam por diferentes motivos:
a) Insatisfação religiosa – Muitos
se afastam porque idealizaram encontrar na Igreja Anglicana algo que não
oferecemos – resposta a todos os problemas da vida, resolução de problemas
familiares ou financeiros ou simplesmente a emotividade do culto.
Quando identificamos isso, começamos
a dizer nos cultos e anunciar no site: “O que temos a oferecer é a
partilha de nossa fé, de nossa busca e de nossa comunhão. Você não ficará mais
rico por vir aqui. Não ficará curado por vir aqui. Não resolverá seus problemas
familiares por vir aqui. Mas aqui você poderá encontrar fé para lidar com essas
situações e, aos poucos, alcançará discernimento para visualizá-las melhor. Se
você busca algo além disso – diversão religiosa, prosperidade material ou um
lugar para reforçar seus preconceitos – não perca seu tempo nem nos procure!
Essa é uma Igreja para gente séria, comprometida com a justiça e que sabe o que
quer”;
b) Idealização de uma Igreja
“perfeita” – Também há aquelas pessoas que idealizam a
Igreja como se ela fosse uma comunidade perfeita, de pessoas sempre santas e
sem problemas. Quando percebem que nossa Igreja também não oferece isso nem
promete perfeição, desanimam. Tais pessoas geralmente não param em igreja
alguma; vivem sempre à procura da “igreja perfeita”, do “serviço perfeito”, do
“casamento perfeito”, da “vida perfeita” e estarão sempre a buscar e a se
decepcionar.
c) Comparação com outras igrejas
“grandes” – Alguns desanimam porque nossas comunidades são mesmo
pequenas. Afinal, poucas pessoas persistem em um estilo religioso que não privilegia
o emocionalismo, que é aberto às questões sociais e de direitos humanos e que
não promove “barganhas”com Deus. Algumas dessas pessoas, desejosas de fazerem
parte de uma igreja “grande como as outras”, cheia de jovens e de atividades,
não demoram a criticar a Igreja Episcopal Anglicana, seu culto, sua doutrina e
seu jeito de ser. Infelizmente já tive a experiência de ter que dizer a uma
dessas pessoas: “se a Igreja é tão ruim assim, talvez seja porque você está
nela…”
d) Problemas pessoais de relacionamento
- Outras se afastam por problemas pessoais e não conseguem perceber
que o mistério da comunhão da Igreja é maior do que tudo e que eventuais
contratempos não devem afastar as pessoas do altar. Tenho consciência de que
algumas se afastaram por problemas comigo ou com minha esposa, mas nem por isso
essas pessoas foram excluídas, “disciplinadas” ou “excomungadas”. Sempre há a
possibilidade aberta de que, em uma eventual mudança de clérigo, essas pessoas
possam se reintegrar ao convívio comunitário, pois os clérigos são sempre
passageiros. A comunidade, porém, deve permanecer.
Mas em muitas dessas perdas
aprendemos também a não esperar muito das pessoas. Às vezes imaginamos que já
estão suficientemente amadurecidas e preparadas para viver a fé no contexto
episcopal-anglicano, mas contatamos que falhamos muito na formação e no excesso
de confiança depositada. Isso nos remete ao problema da formação:
O dilema da formação –
Educação cristã para crianças e formação teológica para adultos é algo muito
difícil de fazer em nossos dias. Por mais que enfatizássemos a necessidade de
reunirmos para estudar a Bíblia, textos teológicos da Comunhão Anglicana ou
técnica musical, poucos se interessaram, e os que se mostraram interessados não
tinham tempo. Até o momento não conseguimos desenvolver uma disciplina de
estudo bíblico e teológico que muita falta faz à comunidade. Empenhamo-nos por
tentar suprir essa carência através dos sermões escritos, sempre preparados com
antecedência, revisados, enviados por email ou publicados no site, mas temos
dúvidas se todos leem. Parece que para a maioria das pessoas, o simples momento
do culto é suficiente, e não percebem que há, no anglicanismo, uma enorme
riqueza espiritual, teológica e litúrgica a ser absorvida.
Um sonho a mais não faz mal… –
Apesar de todos esses problemas, o trabalho missionário ainda nos cativa. É
certo que às vezes desanimamos. Gostaríamos de que a comunidade tivesse um
templo próprio, que não precisaria ser grande, mas que fosse construído com uma
arquitetura condizente com a solenidade dos ritos celebrados; gostaríamos de
ter salas e espaço para educação cristã, formação musical, etc; gostaríamos de
ter uma cozinha e uma área própria para confraternização, mas isso ainda não é
possível.
Um templo fixo favoreceria a
prática dos ofícios diários. Poderíamos ter um ofício breve de oração
(meia-hora) com hinos e música de qualidade, todos os dias da semana (pela
manhã e à tarde), com bênção da saúde. Mesmo que nem todos frequentassem, seria
responsabilidade do clérigo estar presente na hora indicada e iniciar o ofício,
pois o clérigo é, acima de tudo, “sacerdote”, que ora pelas necessidades do
mundo e por aqueles que não têm tempo para estarem ali celebrando com ele.
Naturalmente, uma comunidade
episcopal-anglicana não se limita ao culto. A liturgia, porém, é o momento
sublime, de onde flui a missão e, a partir da celebração regular, poderíamos
constituir uma comunidade com outras frentes de trabalho e de serviço ao mundo
– escola de música, centro de formação para jovens, atuação em direitos
humanos, etc.
O futuro está à nossa frente.
Sonhos existem, mas só se tornam realidade quando são sonhados
comunitariamente. Por enquanto, descansamos nas palavras de Jesus no evangelho
do domingo:
“Assim também vós, depois de
haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque
fizemos apenas o que devíamos fazer”.
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