Uma palavra sobre as declarações do Arcebispo de Cantuária ::..



 Bispo Marc Andrus, diocese episcopal da Califórnia

O Arcebispo de Cantuária fez declarações públicas [1] que revelam, na melhor das hipóteses, uma  ingenuidade lamentável e, na pior delas, tanto uma homofobia quanto um  pensamento colonial. O Arcebispo Justin Welby afirmou que a Igreja da Inglaterra — se ela casa pessoas gays e lésbicas na Inglaterra — é a responsável pelas mortes de homossexuais na África.

O 105º Arcebispo de Cantuária e líder espiritual da Comunhão Anglicana
Revmº Justin Welby

O Arcebispo chegou a mencionar uma vala de cristãos de uma aldeia na África, assassinados, conforme ele foi informado, só porque os vizinhos não queriam se tornar gays pela associação com pessoas cuja religião apoiou os direitos para os LGBTs. É claro que o Arcebispo ficou chocado com a brutalidade por trás deste assassinato em massa e com a própria escalada de matança. Também me senti assim por isso. Em face de tragédias maiores que um ser humano pode ser acometido, acho que muitas vezes vamos para respostas e soluções que nós sabemos, que são familiares. Aqui, particularmente, penso  que o Arcebispo caiu em uma solução que já era injusta, mas familiar para ele: recuar em torno do casamento apenas entre um homem e uma mulher. Uma espécie de não inflame ainda mais pessoas violentas.

O argumento de Dom Welby é paralelo a ter dito que as leis de segregação nos Estados Unidos que se mantiveram até meados dos anos 60 e a privação do papel das mulheres em vários setores nos Estados Unidos até o século XX deveriam ter continuado se alguém alegasse que negros e mulheres em outros países poderiam ser ameaçados por movimentos civis de luta por justiça daqui.

Em um mundo muito simples, com poucas variáveis, talvez pudéssemos dar crédito ao  raciocínio presente nas palavras do Arcebispo Welby. Se o único fator na segurança dos negros LGBTs fosse a manutenção de leis injustas na Inglaterra e nos Estados Unidos, esperaria que todos nós fizéssemos uma pausa para absorver isso e ver o que poderia ser feito. Mas nosso mundo é um lugar extremamente complexo e a lógica simplista do Arcebispo privilegia apenas a posição de poder colonial da Grã-Bretanha, uma vez realizada em relação ao seu então desmantelado império — os africanos devem então prestar muita atenção a tudo o que o centro do Império pensa e faz.

Ao invés disso, a África é um continente de países, cada um com sua própria história em separado, que nada têm a ver com seus antigos mestres do império europeu. Certamente existem pelo menos diversos fatores em curso na África que influenciam a segurança dos LGBTs (e dos cristãos em geral, como Welby argumenta) que se contrabalançam ao foco que africanos possam ter pela Inglaterra.

O Arcebispo poderia ser prestativamente envolvido na África em nome da segurança de pessoas LGBT vulneráveis e até por meios que não perpetuassem a opressão do povo LGBT no Reino Unido, se ele realmente quisesse. Ele poderia apoiar o Ministério do bispo jubilado Christopher Senyonjo, em Uganda, uma voz corajosa e quase solitária na liderança religiosa daquele país [em favor dos LGBTs]. O Arcebispo Welby também poderia falar claramente com as Igrejas Anglicanas no Quênia, em Uganda, na Nigéria, entre outras naquele continente, sobre o amplo apoio que elas dão à legislação que criminaliza o ser das pessoas LGBT.

Se eu estiver certo nas minhas ponderações sobre as declarações do Arcebispo, conforme ele propôs — continuando, dessa forma, a oprimir o povo LGBT no Reino Unido — falhará proteger os africanos por esta razão: 
se a África está observando o Reino Unido tão perto como o Arcebispo tenta nos fazer acreditar, então eles, os africanos, não vão esquecer que o líder espiritual da Comunhão Anglicana está do lado da manutenção da segunda categoria aos cidadãos LGBTs.

Por duas vezes no longo programa de participação por telefone em que o Arcebispo fez suas observações, Welby usou o termo "incrivelmente" para descrever como a Igreja deve tratar o testemunho da comunidade LGBT — ouçam incrivelmente com muito cuidado e sejam incrivelmente conscientes. Para lembrar de uma grande fala do filme “A Princesa Prometida”, não tenho certeza se o Arcebispo sabe que uma incrível atenção significa.

Devemos nos lembrar que o Arcebispo deu uma clara opinião pessoal sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em um discurso para a Câmara dos Lordes reiterou, como ele fez na entrevista de rádio recentemente, que o casamento é uma instituição sagrada reservada para heterossexuais. Na verdade, nesta entrevista mais recente o jornal britânico Guardian escreveu que o Arcebispo não queria que as pessoas LGBT fossem tratadas com  maior severidade do que heterossexuais adúlteros são tratados. A ideia central aqui, se alguém se importa de ver de perto o que ele quis dizer, é que relacionamentos do mesmo sexo são pecaminosos.

Hoje, os meios de comunicação na diocese em que sirvo mostraram um dos meus sacerdotes — um homem gay, devidamente casado — sendo levado por policiais por conta de um ato de desobediência civil em nome dos imigrantes que se encontram em risco de deportação. Tais atos ao lado da justiça são, estou feliz em poder dizer, comuns nesta diocese... e são realizados o tempo todo por pessoas gays e hétero. Corajosamente fieis, ao invés de pecaminosos, parece ser um termo melhor para descrever esse padre episcopal e muitos como ele aqui.

O Arcebispo Welby afirma que o casamento deve ser apenas entre um homem e uma mulher, e diz que as Escrituras apoiam sua posição. Eu sinceramente esperava muito mais para um leitor das Escrituras como líder espiritual de nossa Igreja. Deixe-me apontar esta passagem do Evangelho para este domingo: a ressurreição de Lázaro dentre os mortos, conforme o Evangelho de São João, mostra-nos um bom lugar para buscar orientação sobre a questão que envolve a segurança de todos os cristãos, sejam hetero ou LGBT, tanto na África como também em outros lugares.

Bispo Marc Andrus realizando matrimônio igualitário na Paróquia da Trindade (Nova York)

Jesus se encontra tão profundamente comovido — pela morte de seu amigo, pela opressão do seu povo, com o sofrimento do mundo — que ele arrisca tudo para ir para a caverna onde Lázaro estava enterrado com o fim de traze-lo de volta à vida. Tomé, chamado Dídimo, disse aos seus condiscípulos: “Vamos também nós, para morrermos com ele” (Jo 11,16). Para levantar Lázaro da morte Jesus teve que ir direto para as águas políticas turbulentas dentro e ao redor de Jerusalém, onde sua vida corria perigo, e onde ele viria a ser rapidamente traído, torturado e morto.

Esta coragem e compaixão devem ser meu guia, e eu sugiro que seja também o guia como nos identificamos com Cristo, como cristãos. 

Existem outras passagens das Escrituras que podem apontar como visualizar a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo. A ressurreição de Lázaro dos mortos nos dá orientações sobre como devemos agir quando confrontarmos injustiça, maldade e pecado.


+MHA



Revmº Marc Handley Andrus é o bispo da Diocese Episcopal da Califórnia

Título original em inglês: “A word on the Archbishop of Canterbury's statements”


Artigo publicado em 05 de abril de 2014



Tradução: Ricardo Pinheiro

Imagens: Getty Images e Flickr


NOTA:
[1]  As declarações do Arcebispo de Cantuária, Justin Welby [vejam este link: http://migre.me/iOc1O], líder da Comunhão Anglicana, repercutiram em todo o mundo, acirrando antigos debates entre conservadores e liberais. Nossa pastoral, recentemente, publicou um editorial sobre um desses artigos acirrados que acabou gerando controvérsia sobre o caminhar seguro dos episcopais anglicanos no Brasil (e em diversas partes do mundo) quanto à plena inclusão de todas as pessoas na dinâmica da vida da Igreja. Sugerimos ao leitor a consulta ao nosso editorial neste blog com o título "Quando todos os tipos de fundamentalismo não nos representam". Confiram pelo link: http://migre.me/iOcdU

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