: Quando todos os tipos de fundamentalismo não nos representam ::..
Saber que o Arcebispo de Cantuária representa a Comunhão Anglicana (preste atenção que aqui não falamos “Igreja”) é importante, pois evita o caro leitor de incorrer no risco quase comum de “vaticanizar” a Igreja Anglicana. Estamos querendo “justificar” falas de pessoas? Não; antes, buscamos apenas colocar os pingos nos is e impedir que uma reportagem com sombras de um espírito muito semelhante aos dos mais insensatos fundamentalistas (só que às avessas) queira forçar uma situação que não corresponde ao pensamento de milhares de anglicanos e centenas de lideranças independentes (guarde bem esta palavra também) em todo o mundo.
Não
faz muito tempo, naquele período de hospitalidade ao Papa Francisco em nossa
querida terra brasilis, quando viajava de volta ao Vaticano, uma das declarações mais
fortes (se não a mais forte de todo o seu pontificado) foi ecoada pela imprensa
mundial: “quem sou eu para julgar os gays?”. Óbvio que todos os comprometidos com os direitos humanos gostamos e aplaudimos este belo momento de sensível humanidade e lucidez diante da diversidade da vida. De repente, os latinos mais
entusiasmados e defensores de uma linha mais progressista se emocionaram não
apenas com as palavras (pois, de fato, elas nos emocionaram a todos), mas
sobretudo com a possibilidade de “mudança” (entre aspas é fundamental para se
entender os mecanismos da coisa frente à complexidade e à coesão magisterial da chamada Doutrina Moral
dentro da Igreja Latina). Quem não gostaria de ver a Igreja de Roma se abrindo
a um entendimento contemporâneo acerca do valor do acolhimento, de fato, de
todos os seus milhões de fieis homoafetivos? Falamos de “acolhimento de fato”
porque, a grosso modo, o Catecismo da Igreja Latina não exclui seus fieis
homoafetivos, até aponta que deverão ser recebidos e cuidados para, logo a
seguir, nos parágrafos seguintes, pontuar que são passíveis de um desajuste
moral.
A bem da verdade, o papel da Romanis Mater Eclesiae não é julgar ou condenar, mas acolher "com respeito, compaixão e delicadeza" seus filhos sujeitos do que eles consideram "atos desordenados" [Catecismo, § 2357] ou lá o que queiram dizer com isso. A mim não me pareceu nenhuma referência boa ou positiva, no final das contas, mas prossigamos. Até aí nada é essencialmente novo na dinâmica de um catecismo que espelha o modus operandi de Roma, o que, semanas depois, foi pastoralmente reforçado com declarações emitidas pela Congregação para a Doutrina da Fé. Houve um rebuliço nos setores mais conservadores da Igreja tentando jogar panos quentes no frisson da mídia mundial. Uma espécie de “parem de distorcer o que o Santo Padre falou”. Não estou querendo diminuir o peso de importância daquela declaração genuinamente cristã (ao estilo 'quem somos nós para usurpar o lugar de Deus, o único Juiz dos corações?'). Mas você há de convir comigo que, no final das contas, nada há de novo em termos de abertura no entendimento da questão, por mais que a declaração do Papa tenha trazido esperança para muita gente que sonha com uma mudança na doutrina --- o que nunca aconteceu em nenhum papado até hoje! --- de tal modo que venha abrir, aos pouquinhos, as portas para a aceitação de todas as pessoas em todos os cargos da Igreja. Rezamos com nossos irmãos para que isso aconteça, mas certamente não será nesta nem na próxima geração que veremos este virar de páginas na História.
A bem da verdade, o papel da Romanis Mater Eclesiae não é julgar ou condenar, mas acolher "com respeito, compaixão e delicadeza" seus filhos sujeitos do que eles consideram "atos desordenados" [Catecismo, § 2357] ou lá o que queiram dizer com isso. A mim não me pareceu nenhuma referência boa ou positiva, no final das contas, mas prossigamos. Até aí nada é essencialmente novo na dinâmica de um catecismo que espelha o modus operandi de Roma, o que, semanas depois, foi pastoralmente reforçado com declarações emitidas pela Congregação para a Doutrina da Fé. Houve um rebuliço nos setores mais conservadores da Igreja tentando jogar panos quentes no frisson da mídia mundial. Uma espécie de “parem de distorcer o que o Santo Padre falou”. Não estou querendo diminuir o peso de importância daquela declaração genuinamente cristã (ao estilo 'quem somos nós para usurpar o lugar de Deus, o único Juiz dos corações?'). Mas você há de convir comigo que, no final das contas, nada há de novo em termos de abertura no entendimento da questão, por mais que a declaração do Papa tenha trazido esperança para muita gente que sonha com uma mudança na doutrina --- o que nunca aconteceu em nenhum papado até hoje! --- de tal modo que venha abrir, aos pouquinhos, as portas para a aceitação de todas as pessoas em todos os cargos da Igreja. Rezamos com nossos irmãos para que isso aconteça, mas certamente não será nesta nem na próxima geração que veremos este virar de páginas na História.
Não é preciso ir muito
longe para se esquecer as tensões entre Igreja versus Estado argentino quando o então cardeal Bergoglio,
à época arcebispo de Buenos Aires e bastião do conservadorismo, afirmou que o projeto de casamento entre
pessoas do mesmo sexo se tratava de um “movimento do diabo” que pretendia
“destruir o plano de Deus”. É de se perguntar sem ofender: De repente, o “movimento do diabo” passou a ser
movimento do céu para o entendimento do cardeal Bergoglio? Não estou convencido disso, por mais que eu curta o jeitão pastoral e mais próximo dos clamores sociais do Papa Francisco. Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa, diria o provérbio popular. Estou convicto que há que se entender o cuidado com
as palavras quando a amplitude do cargo demanda uma atenção maior com elas --- à vista do estardalhaço negativo que já tinha demandado quando
ainda era cardeal na Argentina. Foi um período muito tenso e com muitas trocas de acusações entre a presidenta argentina e o então arcebispo Bergoglio. A imprensa local assegurou de dicotomizar a sociedade dizendo que ela se encontrava dividida entre os "a favor" (no caso, a Igreja de Roma e vários setores conservadores) e os "contrários" (políticos, de uma forma geral, e movimentos ligados aos direitos civis dos cidadãos LGBTs) à "família" (como se fosse um bloco fechado e formatado, sem chance de qualquer desvio do padrão heterossexual). Dessa vez, em entrevista aos repórteres que viajavam com o pontífice romano do Rio de Janeiro de volta ao Vaticano, não falou mais em plano diabólico. Foi mais pastoral: "quem sou eu para julgá-la", esclareceu. Ele foi sábio com as palavras, sincero, diria. Em nenhum momento foi contrário ao catecismo oficial da Igreja. Os "atos desordenados" continuarão a ser "atos desordenados" e o remédio continuará a ser o celibato imposto ("As
pessoas homossexuais são chamadas à castidade", afirma o § 2359 do Catecismo).
Você deve estar se perguntando o porquê de ter lançado mão de ilustrar a matéria com as declarações do Arcebispo de Cantuária com o Papa Francisco. Resolvi propositalmente trazer ao caso esta breve reflexão
sobre a postura no papel de um líder religioso com ramificações tão abrangentes
quanto é o caso do Arcebispo de Cantuária, Justin Welby, em detrimento do
exemplo de outro líder religioso cristão, pastor do maior rebanho cristão do
mundo, o Papa Francisco. Tenho razões para fazê-lo. Há muitas diferenças --- assim como há muitos pontos
de convergência --- entre eles enquanto cristãos engajados na propagação de valores muito bons. Pra mim, no entanto, a mais evidente dessas diferenças
reside no fato que o Arcebispo de Cantuária não é o papa dos anglicanos. Da
arquidiocese de Cantuária não sai os ditames doutrinários e morais
estabelecidos pelo Magistério da “Church of England” para serem seguidos por
todos os anglicanos espalhados nos mais de 160 países do mundo em que estão
presentes (ao lado da Igreja de Roma é o grupo cristão mais ramificado pelo
mundo). Não! A Comunhão Anglicana é dividida em Províncias autônomas (o Brasil
é a 19ª Província), o que vale dizer: se o Arcebispo de Uganda, Revmº Stanley Ntagali, defende que
homoafetivos não podem ter cargos na Igreja, a não ser que sejam celibatários e
mantenham o discurso conservador de um só tipo de família (qualquer semelhança com a visão romana, neste aspecto, é mera coincidência...), tendo dito,
inclusive que “os homossexuais são amados e valorizados por Deus e merecem o
melhor cuidado pastoral e a amizade” 1, e isso para ficar bem na fita e não dar aquela imagem de incentivador da caça aos gays (pura politicagem, desculpem), o mesmo não se vê, por exemplo, na
Província do Canadá e na dos Estados Unidos, que são diversas entre uma e outra mas ao mesmo tempo autônomas e incontestavelmente bem menos conservadoras, ainda que pertencendo a mesma Comunhão
Anglicana que a província do arcebispo de Uganda. Hã? Como assim? É possível? Não há um prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé anglicana que repreenda (e puna) as províncias dos EUA e do Canadá por aceitarem clérigos abertamente gays ou até mesmo por realizarem matrimônio igualitário? Não, não há. Não há porque não existe esta hierarquização internacional da Igreja Anglicana com um poder centralizado de uma, digamos, Cantuária vaticanizada. Somos diversos, embora mantendo a Unidade como sinal de que a Igreja de Cristo é Una, Santa e Católica.
No Brasil, contrariando alguns conservadores que parecem preferir o modelo de boa parte das províncias anglicanas africanas, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil tem dado passos muito seguros na condução do povo de Deus com valoroso cuidado pastoral e atenção aos novos modelos de família, preferindo se coadunar às evoluções da própria sociedade, dos textos constitucionais e das decisões da Suprema Corte, ressignificando seu posicionamento e, por conseguinte, sua liderança em atenção aos valores essenciais do Evangelho, que acolhe a todos sem impor-lhes rótulos, na grande Missão de anunciar o Evangelho cujo alicerce é a fé inabalável em Cristo, o Cabeça da Igreja, e não na moral, a construção cultural de um povo num determinado momento histórico. Em outras palavras, somos muito menos conservadores que as províncias africanas e muito mais próximos de uma teologia histórico-crítica como as das províncias estadunidense e canadense, pagando um alto preço, diga-se, para nos manter fieis à ética do Evangelho, que não se coaduna aos valores da chamada Teologia Moral de Causa e Efeito, filha religiosa do Sacrifício Competitivo de Caim —, que prega que os que choram são culpados-infelizes; os mansos são percebidos como desinteressados pelo zelo que disputa espaço no chão da Terra; os que tem fome e sede de justiça são interpretados como seres equivocados em suas ignorâncias radicais, pois, a única justiça que os mestres da TMCE conhecem é aquela que eles mesmos decidem.
O Movimento Episcopaz enquanto pastoral de Direitos Humanos e, numa amplitude muito maior, os cristãos verdadeiramente comprometidos com os valores do Reino de Deus, sejam anglicanos, romanos ou quaisquer outros, não têm tempo a perder com quem deseja polarizar e amargar ainda mais o mundo (uma nova forma de rotular e, com efeito, reforçar os estigmas). Como canta o saudoso poeta Renato Russo, “não temos tempo a perder, nosso suor sagrado é bem mais belo que esse sangue amargo. E tão sério!”
Ao
lado de todos e todas que agasalham o afeto e creem no Evangelho que inclui
todas as pessoas que, livremente (posto que até impor a inclusão é atentar
contra a liberdade, isto é, não é amar!), desejam com seus corações ser
incluídas na Igreja de Cristo,
Ricardo
Pinheiro
Coordenador
do Movimento Episcopaz
Na segunda-feira santa, 14/04/2014. A.D.
Na segunda-feira santa, 14/04/2014. A.D.
* 1
– A afirmação foi dada quando o Arcebispo de Uganda se empenhou junto ao
presidente daquele país para emendar a proposta do Parlamento que tornava crime
a homossexualidade, passível até de morte. De fato, houve a aprovação da
tipificação penal dos chamados atos e da propaganda homossexual, reforçando a
imposição do único modelo válido como sendo aquele que representa a família
tradicional heterossexual, mas acatando o pedido do Arcebispo para retirar a
pena de morte. Link: <http://www.bbc.com/news/world-africa-25993140>
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