Cartas entre amigos - Palavras de um profeta da inclusão ao Movimento Episcopaz e ao Palavra Aberta



“Voltem e contem o que vocês estão ouvindo e vendo”  
(Mt 11.4)

Carlos Eduardo Calvani

:: Para Movimentos Episcopaz e Palavra Aberta ::



Estava lendo os textos do Advento e preparando meus estudos e meditações para a Capela da Inclusão e reli o belo texto de Mateus 11, previsto para o 3º. Domingo do Advento.

Lembrei-me de vocês e de toda a ativa movimentação que ouve nas semanas anteriores ao Sínodo, com vistas a suscitar o debate sobre o Matrimônio Igualitário na IEAB.Nós nos envolvemos bastante ,cada qual com seu dom. Trocamos idéias pela internet. Soltamos frases e cartazes no facebook. Divulgamos textos.

Valeu à pena?

Parece que alguns se sentiram frustrados pelo modo como o assunto foi acolhido na reunião Sinodal. Para alguns foi um acolhimento frio e formal. Eu não estava presente e não posso dizer o assunto foi tratado lá.

Mas valeu à pena, sim!. Um passo foi dado. O Sínodo de certo modo ratificou uma decisão do Sínodo anterior, de iniciar um amplo processo de estudo sobre questões de sexualidade, gênero, família, casamento, etc.

Aliás, toda movimentação pré-Sínodo motivou até a inserção de um parágrafo na Carta Pastoral da Câmara dos Bispos. Sem o movimento que surgiu disperso, aqui e ali, talvez este parágrafo nem mesmo estivesse previsto.

Sim, valeu à pena! Reli o meu texto “Instituição e movimentos no dinamismo da Igreja”, divulgado na semana anterior ao Sínodo, e reafirmo que continua valendo a pena. A conquista de espaços e a garantia de certos direitos é lenta. Exige persistência, constância, firmeza, insistência, tal como “água mole em pedra dura...”

Nessas semanas pós-Sínodo houve uma diminuição de postagens na rede social do facebook. Espero que seja apenas ressaca e cansaço. Afinal, dispendemos muitas de nossas energias em um momento em que era necessário fazer isso. Agora é momento de descansar um pouco, renovar as forças, etc.

Volto ao texto de Mateus para dizer que valeu a pena, sim.

João Batista, o profeta impetuoso, robusto, acostumado aos desertos agora era um homem fragilizado, temeroso e cheio de dúvidas. Era um preso político. Limitado em seus movimentos e totalmente à mercê dos podres-poderes da corte.

João estava passando por uma crise de fé.

É compreensível. Sua vida fora dedicada a anunciar o Cristo. Mas talvez a mentalidade apocalíptica da época lhe impregnara de certo imediatismo. Talvez ele não esperasse sua própria prisão, injusta, por sinal. Nessas horas é mais que compreensível perguntar: “valeu à pena?”

            Vale a pena tanto engajamento nos movimentos pelos direitos humanos? Ou pela Reforma Agrária? Ou pelos direitos indígenas? Ou pelos direitos das pessoas classificadas e rotuladas como LGBT? Todos esses sempre foram movimentos marginais e quando nos envolvemos neles recebemos oposição até mesmo de familiares. Vale à pena se após tudo isso, somos jogados ao cárcere do ostracismo?

            A resposta de Jesus não é apenas doutrinária ou institucional. A resposta não está nos muitos documentos da Comunhão Anglicana. Sim, será bom conhecê-los, divulgá-los e utilizá-los, quando necessário.

Mas a resposta da fé indicada por Jesus não aponta para papéis, livros ou documentos, mas para o que tem acontecido na vida:    “Vá e veja o que Deus tem feito”:

            Pessoas antes isoladas são reintegradas ao convívio da comunidade;

       Pessoas recuperam a esperança e a possibilidade da vivência da fé e da espiritualidade em comunidades inclusivas;

Pessoas recuperam a auto-estima e o senso de que sua dignidade é reconhecida;

Pessoas sabem que não estão agora sozinhas, mas que há um grupo em uma Igreja específica, que os apóia e que nessa Igreja elas podem se reintegrar;

Vão, e contem o que vocês têm visto e ouvido:

Gays e lésbicas, pouco a pouco, assumem cargos de liderança em muitas de nossas comunidades;

Gays e lésbicas aos poucos saem do armário mas não abandonam a Igreja, afinal ela é seu lar... sim, alguns ainda se assumem timidamente, mas já é um avanço e é preciso respeitar os motivos particulares dessa timidez.

Na palestra feita por Gustavo Gutiérrez na Conferência de Lambeth 1988, quando foi convidado a falar sobre a Teologia da Libertação e os pobrs, ele disse aos bispos ali presentes – e com muita simplicidade e espiritualidade, algo muito profundo teologicamente e que tem significativas relações com as causas que defendemos. Para compreender isso é preciso dar o salto do conceito sociológico “pobre” para o conceito sócio-cultural de “excluídos”:

Comprometemo-nos com os pobres quando temos amigos entre eles. Não estou caindo numa postura romântica para falar sobre os pobrs. Até pouco tempo eu não conseguia entender bem esta questão. Agora, esotu convencido.t er amigos é compartilhar as nossas vidas com eles e considerá-los iguais a nós. O amor só é possível entre iguais. Quando não consideramos alguém no nosso mesmo nível, não podemos amar essa pessoa. Podemos nos compadecer dela, mas não a amamos. Ter amigos entre os pobres não é apenas questão de interesse humano: é o teste da autenticidade de nosso compromisso (...)

“Qual a razão da opção preferencial pelos pobres? Ela não vem da análise social. A análise social é útil para nos ajudar a entender a situação concreta em que vivem os pobres, mas não é a razão principal do nosso compromisso. Tampouco se trata de uma compaixão humana: ela é importante e nos ajuda, mas não é a verdadeira razão de nosso compromisso. Nem é a nossa experiência direta com a pobreza 9...)a razão é simplesmente porque sou cristão. Deus é a razão principal deste compromisso, e não os pobres. (...)

A gente poderia dizer que os pobres são pessoas belas, tão boas, tão generosas... mas não posso dizer que todos os pobres são bons. É por isso que nosso compromisso com os pobres não é porque eles sejam bons, mas porque Deus é bom. E porque Deus é bom, Ele prefere os mais humildes da terra”

(Gustavo Gutiérrez – “Como dizer aos pobres que Deus lhes ama?” (tradução do revd. Jaci Maraschin) – Estudos de Religião n. 6., IMS, 1989, pg. 39-40)

Por tudo isso, sim, vale a pena... há sinais do Reino.

A legitimidade das causas que defendemos não está apenas  na teologia, na instituição, nos documentos, mas na espiritualidade, na compreensão do o amor de Deus e no que vemos e ouvimos  - Cegos vêem... surdos ouvem...

            Após a resposta de Jesus não mais qualquer menção sobre o modo como João Batista e seu grupo de discípulos reagiram aos sinais apontados por Jesus. Não sabemos se eles se convenceram com essa resposta, um tanto vaga e pouco objetiva.

Lá pra frente, no mesmo capítulo, a perícope diz:

“O Reino dos Céus avança com poder e os que se esforçam apoderam-se nele”. (Mt 11.12).

Essa é uma das possíveis traduções para esse versículo difícil. Alguns estudiosos supõem-se tratar-se da violência agressiva dos que pretendiam estabelecer o Reino à força, tal como os zelotes, que estavam ligados, em parte aos essênios;

Outros, porém, preferem traduzi-lo enfatizando que o Reino certamente está se instalando com poder.

Parece-me que esse é um sentido bastante coerente com o momento de crise vivido por João Batista e por muitos hoje:  “vejam: o Reino está se estabelecendo poderosamente, e os que participam desse avanço se empoderam nele, ou seja, no próprio ato de participar.”

Recebam meu abraço, enviado daqui das margens, e junto com ele, minhas orações e apoio,

Vosso colega e servo,

 Carlos Eduardo Calvani


Resposta do Movimento Episcopaz:






Caro amigo, Rev. Carlos Eduardo Calvani,

Graça como verdade inabalável no ser e Paz como realidade que se faz presente no viver!

A experiência nos demonstra que o Evangelho precisa ser encarnado, vestido com consciência e experimentado na dinâmica do dia a dia em atos concretos. Leio tuas palavras e recebo delas um “sussurro de Deus”, que é sempre mais forte que o mais alto grito dos seres humanos. Tuas letras e o conjunto delas se elevam como fumaça de incenso, dados não apenas o profetismo quanto a sacralidade do que nos entusiasma [en/in + Theo + anima = põe Deus dentro da alma] a fé. Em nome de nossa pastoral, meu irmão, muito obrigado!

Invariavelmente, entre algumas observações e a perícope instalada nas tuas palavras, identifiquei nelas o cerne do “recado de Jesus” aos discípulos de João e aos discípulos que, mesmo não vendo, cremos:   

“Ide, e anunciai a João as coisas que ouvis e vedes: os cegos veem, e os coxos  andam... aos pobres é anunciado o Evangelho. E bem-aventurado é aquele que não se escandalizar em mim  (Mateus 11).

Felizes todas as pessoas que não se escandalizarem com o modo divino de Jesus amar os diferentes, de tratá-los com igualdade e justiça, de oferecer-lhes túnicas, sandálias e aneis novos, isto é, dignificar-lhes! Felizes os que seguirem-No, ainda que alguns se escandalizem com o amor que a todos ama (porque o amor não sabe não amar)!

“Todo aquele que ama nasceu de Deus... todo aquele que não ama [não importa quem seja], não conhece a Deus”, registram e nos calam as palavras iluminadas da epístola de João.

Não queremos parar de amar, Rev. Calvani!

Não queremos parar de falar das coisas que vimos e ouvimos, a partir de nós, “transportados das trevas para o reino do Filho de seu amor”, conforme Paulo escreve aos Colossenses. Não queremos parar, desistir ou retroceder porque, tal como Simão Pedro, o caminho da Salvação tem nome e nos chama para uma Missão contra os poderosos deste mundo e a favor de todos e todas que proclamam as Boas Novas: “Senhor, para quem iremos nós? Só Tu tens as palavras de vida eterna.”

Não queremos porque o Santo Evangelho não se confunde, é tal como o amor: uma vez provado, mesmo em meio a lutas e dificuldades, nas alegrias e nos momentos de perplexidade, não há nada mais saboroso para o alimento da vida. E justamente porque não se confunde, porque é a Missão da Igreja, ousamos perguntar em todas as direções:

Que Evangelho é este se não desce ao encontro dos marginalizados? Que Evangelho é esse se não lava os pés calejados do trabalhador e da trabalhadora, ainda que os tais sejam “informais”, não tenham carteira assinada ou, ainda, vivam espremidos nos saltos altos na “batalha da noite” sem dignidade alguma conferida pelo olhar perverso das pessoas? Que Evangelho é esse que não trata o louvor das crianças e de todos os pequeninos como perfeito louvor? Que Evangelho é esse que desnivela pessoas em categorias, em grupos e subgrupos, por horas trabalhadas, por diplomas recebidos, por vestes, por piercings, por gostos musicais, pelo sotaque denunciador da origem, pela incidência da melanina na pele, pervertendo a ilógica parábola dos trabalhadores da vinha?

Não há outro Evangelho senão o de Cristo, o qual vai ao encontro e age, e traz pra perto, e cura as feridas, e de graça dá porque de graça recebe. Inspirados neste Evangelho prosseguiremos. Todos os dias anunciaremos acerca daquilo que temos visto e provado. Em Sínodo (e bem sabemos que haverá um extraordinário daqui a dois anos), em concílio, em assembleias, em consultas, em reuniões, em conversas, em marchas, em passeatas, em campanhas, em evangelizações pelas ruas e pelas redes sociais, indo e sendo com marcas gravadas no coração e em estampas pintadas nas camisetas, em panfletos pelos ônibus, trens e metrôs, a tempo e fora de tempo, continuaremos nos engravidando do amor de Deus e parindo certezas apaixonadas de como nada nos separará Dele e como Ele mesmo já nos tornou um só (em direitos e deveres diante de sua Graça). Em Cristo, no kayrós de Deus, faremos proezas!

A Igreja e, por extensão, todos os Movimentos que nela nascem e para o povo de Deus se voltam em serviço e caridade é a encarnação do Bom Samaritano. Perceba, Rev. Calvani, a provocativa e extraordinária antítese: “bom” e “samaritano”. Se já não soa mais pra muita gente com o mesmo peso proposto por Jesus, ousamos ressignificar e dizer "bom" e "travesti", como o mestre e doutor Rubem Alves o fez (ALVES, Rubem. Perguntaram-me se acredito em Deus. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007). A Igreja é santa e pecadora. Eis por que a Igreja somos cada um de nós que cremos, sendo quem somos, oriundos de todas as partes, pois são estes que o Pai chama para seus adoradores...

Como o bispo Duleep De Chickera disse em seu profético sermão na Conferência de Lambeth:

“A Igreja é chamada para ser uma comunhão inclusiva, onde existe espaço igualitário a toda e qualquer pessoa, independentemente de cor, gênero, habilidade, orientação sexual. Unidade em meio à diversidade é uma respeitosa Tradição Anglicana – uma forma de espiritualidade, se gostariam de saber, através da qual reforçamos toda a humildade por causa de Cristo e do seu Evangelho... Falamos de justiça e (...) falamos em nome daqueles que não falam por si.”

[Ref.: http://www.lambethconference.org]

Não é fácil, amigo e irmão. Não é fácil nadar contra o curso deste mundo-sistema, embora esta seja a ordem natural pra quem “nasce de novo”, pra quem, entre acertos e limites de nossa humanidade, ousa enxergar a vida com o doce olhar de Jesus e Nele se empodera para continuar levando adiante o Seu reino. Assim, é nesta ousadia que permaneceremos como faróis neste mundo, refletindo a luz que não é nossa, mas de nosso Cristo e Senhor.

Queremos continuar vendo o reino de Deus acontecer. Não desistiremos enquanto houver um Jesus aqui e acolá aguardando pão, roupa, visita no cárcere, autorização para casar e ter os mesmos direitos... continuaremos vendo Jesus aqui e acolá, em rostos, em abraços, em manifestações de coragem, de carinho e também em palavras como as suas!

Receba nossa admiração, nossa gratidão e o convite para caminhar mais uma milha na Igreja que, pela Graça, o Senhor nos chamou! Ei-Lo aí mesmo, Rev. Calvani, dentro de vós!


Ricardo Pinheiro
Coordenador
05/12/2013

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