:: Uma vida pelo "Little Pony" — A resposta ao medo do diferente de nós


Quantos de nós já não tivemos conhecimento de vítimas, algumas fatais, de bullying?

Em todas as partes do mundo crianças, adolescentes e até adultos dão cabo de suas vidas (ou tentam, às vezes com graves sequelas) diariamente em decorrência de não mais suportarem os ataques ou a exclusão perpetrada por aqueles que não admitem o diferente da maioria?

No início do ano uma reportagem rodou o mundo noticiando um caso nos Estados Unidos envolvendo o pré-adolescente [1] Michael Morones, 11 anos, que tentou se matar depois de sofrer bullying homofóbico na escola. 


O garoto, que tentou se enforcar, foi encontrado pelos pais desmaiado em seu quarto. Segundo os médicos, como o cérebro ficou muito tempo sem receber oxigênio, a criança teve graves sequelas. A mãe de Michael, Tiffany Morones, disse que o motivo do bullying era o fato de Michael ser fã do desenho “My Little Pony” (Meu Pequeno Pônei). Por conta disso, os colegas de Michael o chamavam de gay. Segundo a mãe disse o garoto já se queixava a algum tempo que estava cansado de ser humilhado todos os dias na escola. 

A história de Michael Morones é a de muitos em toda a parte. A sua família se uniu, criou a Fundação Michael Morones que luta contra o bullying, ganhou adesão de muita gente no seu país, inclusive dos criadores do desenho “Meu pequeno Pônei”.  Michael perdeu alguns movimentos, mas segue lutando e sendo uma espécie de “mensagem encarnada” contra o terror do bullying.

Sabe por que essas coisas ainda acontecem?

Porque a estupidez humana, cuja pedra angular é a aversão a tudo o que escapar da norma, do padrão, se dissemina com o reforço ao discurso inconsciente em sua defesa. Isto se dá de muitas formas. Assim como numa cria de muitos filhotinhos aquele que for diferente ou deficiente, fugindo ao padrão de beleza ou de aceitação da maioria, será estigmatizado como imprestável, sendo portanto rejeitado, os seres humanos ensinados pela norma da maioria repetirão o processo entre seus iguais. O gordinho, o magrelo, o pretinho, o surdo, o cego, o dentuço, o orelhudo, o albino, o delicado demais, a machona, enfim, serão alvo do rigor perverso exercido (porque um dia foi aprendido) pela maioria.

Por que se diz que aprendemos?

Porque ninguém nasce estúpido, intolerante, preconceituoso, homofóbico, binarista (o azul é dos meninos e o rosa é para as meninas; jamais o contrário), machista, perverso nem assassino. Somos ensinados assim. Somos moldados (ou deformados) a repetir o papel na sociedade. Somos preparados a entrar no mundo como se estivéssemos com um cinto de explosivos prestes a detonar... não em nome de Alá (embora isso aconteça em nome dele e também de Jesus Cristo), mas pelas ideologias que nada mais são que o fruto do acordo social da maioria... Somos ensinados a sermos meninos e meninas bomba.

Há pais que parabenizam, elogiam e dão tapinhas nas costas: “isso aí, rapaz!”, “essa é a garota do papai!”... São premiados por serem cruéis. Nós ensinamos e preparamos os futuros mantenedores de uma sociedade cruel, maligna e distante da Mensagem do Evangelho.


O que nem todos conseguem enxergar é que por trás do discurso “social” da maioria intolerante está a semente que alimentou aquele pai e aquela mãe a se tornar o sujeito capaz de ensinar seu filho ou sua filha a agir exatamente como eles, um dia, agiram. Por trás da formação doméstica, nascida em casa, ensinada pelos pais ou responsáveis (ou qualquer deles), invariavelmente, está o discurso religioso de exclusão e de incitação à perpetuação do ódio (que nem sempre vem apresentado na embalagem de ódio, pois pega mal a qualquer ser que se diga adorador de um deus; às vezes, vem embutido discretamente naquela faixa "inofensiva" de que se está lutando pela família, que Deus ama o pecador mas não o pecado — que sempre é visto na perspectiva sexual heteronormativa e, ainda assim, de quem não se conformar com a regra da maioria).

Nós aprendemos direitinho a lição de casa para odiar diferentes, lançá-los nas fogueiras de nossas inquisições religiosas ou simplesmente ridicularizá-los até que eles mesmos saiam do caminho (de uma maneira ou de outra).

Sim, somos crueis... mas o inferno são sempre os outros, preferencialmente, os hereges que afrontam ao deus ideológico, pura projeção de nossa miséria e covardia!

Por falar em deuses ideológicos, bom que se diga que nem todo conservador é fundamentalista ou intolerante, mas a maioria o é. O conservador defende, via de regra, a não mudança nas relações sociais. "Deus fez assim. Deus criou assim, tá na bíblia, etc". O novo assusta. O diferente incomoda. Não pode ser normal. Não pode ser aceito, de jeito nenhum... e se aceitarem, aqui em casa não! Ouviu bem, né Arthurzinho? Já sabe, né, Mariana? Aqui em casa, não!

Fugir do padrão ensinado por seus pais é quase um acinte. Se alguém sofre bullying alardeiam que é por exclusiva responsabilidade de quem sofreu... Afinal, tentam justificar inconscientemente, quem mandou colecionar figurinhas de Twilight Sparkle, vir com um caderno com a imagem de Rainbow Dash, a pônei alada com aquela crina nas cores do arco-íris, como o pré-adolescente Michael Morones fez? Quem mandou chegar na escola com aquele cabelo azul turquesa ou com aquela calça de couro colada no corpo “nada a ver”? Quem mandou ser homem e ter voz fina? Quem mandou nascer albino, preto, de cabelo duro, ser vesgo, fanho, orelhudo, narigudo, dentuço, afeminado, masculinizada, ser filho de dois pais ou de duas mães, usar “hijab” ou “xador” (ou um quipá, no caso dos judeus) num ambiente laico ou em algum confessional cristão, por exemplo?

Os abusadores, aqueles que praticam o bullying demonstram que o furor contra o alvo nunca é satisfeito após o ataque. É um ciclo maligno, pois a violência nunca é suficiente. A cobiça instalada nos abusadores é insaciável, por isso segue o fluxo para mais e mais gerações numa longa cadeia de emulações comportamentais e coletivas. A fraqueza de uns é imediatamente condenada por outros, que se unem para impedir que aquela repreensão ou aquela violência também lhes acometam um dia. A cadeia de maldade não tem fim... eis por que o mundo e seus sistemas de exclusão jazem no maligno. O alimento desse furor nasce desse ambiente, que não é geográfico mas plenamente habitável nos limites da consciência de quem é parte ou cidadão deste mundo maligno.

Sabe-se que toda regra oferece uma exceção. Mas exceções aqui são filetes de luz em meio a uma geração em trevas de intolerância. Não é a regra, isto é, não faz parte da maioria. Pois, afinal, a maioria dos pais intolerantes formarão seres que engrossarão as fileiras de intolerantes entregues à sociedade.

Mas é na religião que embasam a perversidade que alguns poucos tentam esconder (grande parte, hoje em dia, nem mais esconde... e ainda citam orgulhosamente trechos pinçados de seus livros sagrados, pois para os tais, pasmem, a verdade que liberta é o texto escrito a trocentos mil anos atrás!).


Bullying acontece em todos os ambientes, mas nascem lá atrás no discurso religioso fundamentalista. Mesmo que o filho ou a filha, mais tarde, não venha a participar da religião dos pais ou até mesmo a crer na existência de alguma divindade (boa parcela de ateus, não todos, mas boa parcela foram religiosos feridos um dia), invariavelmente continuarão a reproduzir o papel formador aprendido na infância. Volto a dizer, existem exceções mas, obviamente, não como regra.

Todo machista, preconceituoso, homofóbico é um religioso?

Claro que não, mas grande parte nasceu ou teve influência do discurso conservador, nascido no contexto religioso fundamentalista. O poder que ele exerce ao longo da formação das gerações é enorme, mesmo que o sujeito abra mão dos conteúdos credais fica no entanto a raiz das intolerâncias dentro do subconsciente, até por uma questão de autopreservação contra possíveis agressões futuras. Eis por que o machista, o racista, o homofóbico, o misógino, o xenófobo, enfim, não passa de um inseguro de si mesmo.

Religião que não “religa” o ser humano com o seu próprio valor de ser humano e a importância de sua dignidade,  na verdade, não religa porque nada carrega de valor na perspectiva de “algo maior” ou, dentro do contexto do que nós cristãos cremos, não tem correspondência ao Evangelho.

A verdadeira religião ama. A verdadeira religião não faz acepção de pessoas. A verdadeira religião acolhe até quem é diferente, seja estranho ou não para você ou para mim.

A verdadeira religião não é uma presunção do homem se ligando a Deus, até porque nós cremos que Cristo pagou tudo, ou seja, estamos ligados a Ele gratuitamente. A única religião que o ser humano pode praticar é a da religião dele com seus semelhantes. É quebrando muros de separação com seu semelhante, é perdoando seu semelhante, é se reconciliando com seu semelhante, é tendo projetado para o semelhante o “olhar de Cristo”, é se tornando humano contra a desumanidade presente.

Infelizmente, a ideia do divino é  tratada na linha da horizontalidade. Portanto, se alguém é machista assim crê que seu deus também o é. Se alguém defende que não existem outras orientações sexuais abençoadas senão a da “norma padrão”, no fundo, acredita que seu deus assim o é e assim declara. Deus e criaturas são um só, iguais em desejos, amores, fobias, inseguranças e ódios. Esse deus, acertadamente Nietzsche proclama: está morto!

Por isso mesmo perguntar quem é Deus não nos parece ser a questão.

E sim:

Quem é Deus para você?

A partir da resposta se poderá ter algum ou alguns sinais claros que expliquem algumas condutas e o porquê de disseminá-las na formação dos filhos ou de quem lhe esteja sob responsabilidade e cuidado de formação.

Infelizmente não chega a ser mito afirmar que boa parcela dos intolerantes e preconceituosos na sociedade foram “chocados” nas igrejas mantidas ou dirigidas por preconceituosos e intolerantes. Já outra parcela parece ter aprendido no exemplo estabelecido pela conduta da maioria, preferindo consentir — até para se preservar de ataques semelhantes — com os acordos sociais que mantêm a exclusão e tornam o diferente, o estranho, o esquisito alvo dos gracejos, da violência e da exclusão.

Tudo isso, no entanto, tem aumentado ultimamente. A violência, o bullying, a homofobia (muitas vezes disfarçada de suposta aceitação, desde que não seja qualquer coisa das portas para dentro de sua própria casa) e todas as demais formas de diminuição, humilhação e aniquilamento do semelhante.

Combate-se a ignorância com educação. Por outro lado, lamentável é saber que no que depender dos parlamentares ligados às bases religiosas fundamentalistas (estes que tratam Deus como uma ideologia, por isso incitam seus fieis e eleitores ao ódio e citam trechos da bíblia para tentar justificar a maldade que lhes habita), nada será mudado tal como já está. Insistem malandramente que a educação sexual é tarefa privativa dos pais. Isto porque sabem que é impossível conseguir manipular com ignorância os setores públicos da sociedade como fazem dentro de seus currais religiosos.

Combatem-se os preconceitos, de uma forma geral, com legislação que ampare as vítimas. Triste é lembrar que não está sendo fácil tipificar algumas condutas que a sociedade reprova justamente porque os mesmos setores conservadores, ligados a currais religiosos, fazem manobras e exercem a velha tática da chantagem dentro do jogo político com o Governo para trancar ou retirar de pauta temas que não lhes sejam agradáveis (leia-se: que vislumbre tratamento igual a todas as pessoas).

Combate-se a miséria de alma, que só ama (e quando ama!) quem for seu clone, quem estiver caminhando conforme a norma estabelecida pelo acordo da maioria, tomando a decisão de vencer a violência e a intolerância com a aplicação da Graça mediante a prática do amor e o abandono do medo de quem lhe for diferente.

Veste-se com as vestes do Cordeiro de Deus quem ousa denunciar toda forma de violência, dor e miséria contra o próximo enquanto não se cansa de proclamar com gestos simples na vida que a misericórdia triunfa sobre todo juízo de valor, seja moral, religioso ou de qualquer outra natureza.

Sejamos, portanto, incansáveis na prática do bem e no exercício do amor, o qual respeita até quem nossa natureza humana se recusa a enxergar como semelhante. O amor e a bondade não nascem nos corredores de nossa humanidade, pois nós não somos a fonte; antes, são dons de Deus que estão à disposição de quem decidiu fazer da vida o paraíso de justiça, igualdade e esperança para todos e todas.

Lembremo-nos que aquilo que é impossível a todos nós, enquanto seres limitados, aprendendo a cada dia a sermos melhores que o dia que passou, é completamente possível a Deus.


R. P.
Movimento Episcopaz
Anglicanos Pró-diversidade & pela paz
06/11/2014


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