:: Reformas e revoluções ― O que precisamos hoje é o retorno à simplicidade do Evangelho



Neste último 31 de outubro muitos segmentos da Igreja Cristã celebraram o chamado dia da Reforma, um feito que eclodiu em 31/10/1517 quando o então monge agostiniano Martinho Lutero pregou suas 95 teses de protesto no Castelo de Wittenberg, na Alemanha. A partir daí, muita coisa se desdobrou em milhares de perseguições, mortes e uma ruptura que marcaria para sempre a Igreja cristã e, obviamente, toda a Europa, o centro do mundo naqueles idos.

Não desejaria aqui assumir posturas em defesa ou contrárias ao então monge agostiniano. Já li algumas coisas e me surpreendi com a estultice humana em quase divinizar ou praticamente demonizar alguém em razão de seus feitos. Também não me pareceria justo ignorá-las, como alguns confrades meus o fazem em relação à Reforma. Se eu buscar compreender o cenário naquele contexto histórico, se dentro de meu olhar voltado para a denúncia de todas as formas de injustiça, entre as quais a corrupção e o abuso de poder, procurar ser justo não poderei me unir aos opressores que se sentiram “perturbados” com a ousadia de um professor universitário e religioso que questionou algumas práticas distantes da simplicidade do Evangelho do Cristo. Mas é bom que se diga que ele não foi o primeiro a ousar questionar desvios, corrupção e cabresto do rebanho através das teorias meritocráticas. Décadas antes de Lutero o mestre da Universidade de Praga, João Huss [1], já tinha sido condenado por heresia à fogueira pelo Concílio de Constança quando não quis se retratar de seus pontos de vista teológicos que compreendiam Cristo, e não o papa, como o Cabeça da Igreja. Isto para não citar o padre e pré reformista inglês João Wycliff [2]. Todos foram declarados hereges pelo Concílio de Constança.

Mas qual o contexto daquele ato por Martinho, um homem ligado a dois mundos: o acadêmico e o da vida religiosa? Pregar qualquer coisa na porta de um castelo ou catedral era um gesto cultural daquele tempo convidando a comunidade (ou quem estivesse sendo chamado no documento) para um debate. Foi isso que Lutero fez. Ele, na verdade, aproveitava a chegada do frade dominicano João Tetzel a Wittenberg, que tinha sido encarregado de fazer a venda das indulgências (o perdão das penas temporais do pecado) pelo arcebispo Alberto de Brandemburgo.

Parêntese: O arcebispo Alberto de Brandemburgo, diferentemente do que alguns possam pensar, não era um religioso “de carreira” que tinha alcançado o arcebispado depois de anos de pastoreio e sacerdócio. Muito ao contrário. Negociatas e muito jogo de interesse deram o tom do que o levaria ao cargo. O roteiro estaria mais para o que hoje vemos nas indicações de pastas em ministérios e nas lideranças de partido. A família de Alberto, rica e influente, moveu os pauzinhos e, literalmente, comprou a função.

Desde meados do século XIV, cada novo líder do Sacro Império Romano era escolhido por um colégio eleitoral composto de quatro príncipes e três arcebispos. Em 1517, quando houve a eleição de um novo imperador, um dos três arcebispados eleitorais (o de Mainz ou Mogúncia) estava vago. Uma das famílias nobres que participavam desse processo, os Hohenzollern, resolveu tomar para si esse cargo e assim ter mais um voto no colégio eleitoral. Foi aí que um jovem dessa influente família, Alberto, foi escolhido para ser o novo arcebispo. Só que havia dois problemas: ele era leigo e também não tinha a idade mínima exigida pela lei canônica para exercer tal função. O primeiro problema, graças ao dinheiro de sua família, foi “$anado”. A ordenação veio ao estilo “fast food”. Pagou, levou na hora.

Quanto ao impedimento da idade, era necessária uma autorização especial do papa. Aí entra, mais uma vez, a influência de sua família. Foi selado um acordo de cifras milionárias, mas que era um negócio altamente vantajoso para ambas as partes. A nobre família comprou a autorização do papa Leão X mediante um empréstimo feito junto aos banqueiros Fugger, de Augsburgo. Ao mesmo tempo, o papa autorizou o novo arcebispo Alberto de Brandemburgo a fazer uma venda especial de indulgências, dividindo os rendimentos da seguinte maneira: parte serviria para o pagamento do empréstimo feito pela família e a outra parte iria para as obras da Catedral de São Pedro e São Paulo, em Roma. E assim foi feito. Todos lucraram com isso.

Assim que comprado seu título de arcebispo e tão logo suas credenciais chegaram de Roma, instalando-o canonicamente na função, Alberto encarregou o dominicano João Tetzel de fazer a venda das indulgências. É quando aparece pela cidade onde Lutero, um professor renomado na Universidade de Wittenberg, estava.

Justamente naquele ano Lutero dava aulas no que hoje chamaríamos “curso de extensão”, ensinando Romanos e Gálatas, duas epístolas de São Paulo.  Isso certamente lhe deu um novo entendimento a respeito da “justiça de Deus”: ela não era simplesmente uma expressão da severidade de Deus, mas do seu amor que justifica o pecador [torna-o justo, mas não baseado em sacrifícios ou compra de qualquer coisa e sim] mediante a fé em Jesus Cristo [conforme São Paulo frisa no texto em Romanos 1,17].

Estava preparado o cenário do embate. Lutero chamou Tetzel para um debate sobre as razões de algumas coisas que ele próprio já discernia como insuportáveis e de escambo para com a Graça divina. Ele e muito provavelmente seus alunos podiam discernir, mas a maioria ainda não. Lembrando sempre que estamos falando de Idade Média, isto é, de uma sociedade cuja religiosidade era altamente meritória.

Ao fixar suas noventa e cinco teses acadêmicas no dia 31 de outubro de 1517, o monge Lutero queria provocar um debate, discutir o que seria um acinte à lógica, à razão e aos fatos. Comprar alguma coisa para se obter favor da parte de Deus? E num aspecto menos conhecido de alguns: ajudar a pagar uma dívida sem vergonha que a família do arcebispo daquela região tinha feito ao ter comprado a função eclesiástica para seu filho, e, não apenas isso, mas também ajudar a pagar a obra de um projeto audacioso do papa Leão X (a basílica de São Pedro)?

O fato foi que logo uma cópia das noventa e cinco teses do monge Lutero chegou às mãos do arcebispo, o tal que entrou na função “pela janela” graças a ajudazinha da família. Imediatamente uma dessas cópias foi enviada pelo arcebispo a Roma. No ano seguinte, Lutero foi convocado para ir a Roma a fim de responder à acusação de heresia. Recusando-se a ir, foi entrevistado pelo cardeal Cajetano e manteve as suas posições. Em 1519, Lutero participou de um debate em Leipzig com o dominicano João Eck, no qual defendeu o pré-reformador João Hus [1] e afirmou que os concílios e os papas podiam errar.

Penso que o marco do valor do que veio a ser chamado Reforma é inegável. Alguma coisa deveria ser profundamente mudada. Serviu como uma espécie de advertência histórica quanto ao fato de que há limites para o abuso humano feito em nome de Deus.

Sei que estamos precisando de novas advertências igualmente históricas, mas não defendo que precisamos voltar a reformar a Reforma. Isso pra mim é tentativa de remendo em panos velhos. Os dias em que vivemos pedem uma espécie de revolução do Evangelho, anunciando a tempo e fora de tempo a escandalosa Graça de Cristo. Alguém pode duvidar que exista algo mais profundamente revolucionário que anunciar que Deus ama todas as pessoas e que, no tocante ao argumento de suas condutas (como se fosse um “sine qua non”), Ele mesmo estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando a pessoa alguma suas transgressões?

Ora, seja qual for o preço a pagar pela declaração da verdade do Evangelho, chegamos num ponto que não dá mais para brincar com realidades muito sérias e que exigem um comprometimento quanto ao espírito da Palavra. Deus não pode ser motivo de zombaria, de modo que toda forma de perversão do Evangelho a um sistema de poder e controle ou de manipulação da liberdade que se pode ter em Cristo (liberdade para amar os não amáveis, para acolher aqueles a quem ninguém deseja acolher por conta de acordos da moral da maioria).  Quem tiver olhos para enxergar, enxergue. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça. E quem tiver alma e fé no Ressuscitado, seja firme e corajoso para romper com todos esses grilhões do medo e da escolha nada justa pela neutralidade diante de tanta opressão e tanta exclusão sendo cometida em nome de Deus!

Da Idade Média pra cá, infelizmente, a coisa se deteriorou – e muito! – dentro da institucionalização da Igreja cristã, que buscou se aliar aos poderes deste mundo para igualmente ser agente de poder visível na Terra, e não poder que emana da Cruz para a salvação de todo aquele que crê. O cenário histórico que levou o monge Lutero a ousar romper com alguns grilhões, infelizmente, é um jardim da infância perto do que hoje se vê por todos os lados com as mais diferentes e corrompidas formas de vender indulgências quando se tem a Graça que rasgou o véu que nos separava de algumas impossibilidades na eternidade.

É óbvio e notório que já não se pode condenar e mandar matar com o descaramento daqueles dias. Mas, por outro lado, o que hoje se faz em nome de Deus e do que chamam “valores do Evangelho” é muito pior, pois agridem não apenas a Palavra Encarnada, mas as próprias luzes de esclarecimento dos tempos atuais. Seguem contrários às evoluções naturais do entendimento, da razão e da ciência, bem como dos costumes, do Direito das famílias, etc...

Hoje, ao se afirmar e propagar que a mulher deva ser submissa ao homem, que não exerça autoridade e sequer fale na igreja, que alguns têm predileção diante de Deus por conta e ordem de sua orientação sexual tida como a “da maioria” ou da “normatividade padrão”, que somente quem apresenta atestado cartorial de casamento pode comungar ao lado de seus semelhantes, não estamos vendendo mais o céu, como João Tetzel fez, a mando do papa Leão X, mas sim a Terra. As nossas indulgências já não têm a ver com a salvação, mas com a prosperidade que se pode alcançar com o luxo, a riqueza e o poder exercido sobre muitos, de preferência com os status dos títulos e posições.

O que se vê é que até hoje as barganhas com Deus não pararam, mas se sofisticaram na sua malignidade, às custas da miséria, da mentira e do amassamento de muitas consciências cativas, gente esfaqueando a alma ou se auto flagelando crendo que Deus não o ama por conta de uma pregação mal-dita. Está diante dos olhos de quem ousar ver: antes mesmo de Lutero, mas considerando apenas a Reforma para cá tudo continua a ser movido pelo amor ao dinheiro e pela doença do poder pelo poder.

Onde está o “soli Deo gloria” (somente a Deus a glória) daqueles reformistas contemporâneos a Lutero? Ter uma casinha branca de varanda com quintal e uma janela para ver o Sol nascer é sonho pueril, quase um acinte a quem deseja seguir o apelo de Mamom com o “tudo isso te darei se prostrado me adorares”, falsificando a mensagem como se pudesse servir a Deus e outros ídolos.

Não, não podemos nos calar. A revolução do Evangelho nas consciências é necessária. Uma tese pra mim já é suficiente: “Deus é amor”. Sim, como diz São João, “aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor(I Jo 4,8). O convite foi cravado na Cruz antes de haver mundo, pois, afinal, bem sabemos que o Agnus Dei foi imolado antes da fundação do mundo (Ap 13,8).

Quem ousará desdizer a decisão do Eterno?

Quem intentará acusação contra os eleitos em seu doce amor?

Por uma revolução do Evangelho, a começar em mim,


R. P.
No dia de todos os Santos, 01/11/2014

[1] João Hus foi um sacerdote e professor da Universidade de Praga, na Boêmia, foi influenciado pelos escritos de Wycliff. Definia a igreja por uma vida semelhante à de Cristo, e não pelos sacramentos. Dizia que todos os eleitos são membros da igreja e que o seu cabeça é Cristo, não o papa. Insistia na autoridade suprema das Escrituras. Hus foi condenado à fogueira pelo Concílio de Constança. 

[2] Professor doutor em Oxford, que foi quem influenciou João Hus e, bem mais tarde, por modos diferentes, Lutero e o próprio rei Henrique VIII.

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